segunda-feira, 25 de maio de 2015

Entre o Pôr do Sol e a Luz do Luar, Encontra-se a Obsessão

Este é um final alternativo para o conto "Venha Ver o Pôr do Sol" (Lygia Fagundes Telles) escrito por mim. Recomendo o conto.



            [...]
            – Chega, Ricardo! Você vai me pagar! – gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo. - Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos! - exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.
            Ricardo, porém, tratou com frieza o desespero de Raquel e apenas ofereceu suas costas como resposta. Ensaiou um primeiro passo, depois o segundo e assim desapareceu da vista de sua vítima.
            - Não, por favor. - Ela disse com a boca repleta de saliva, devido ao choro.
            A angústia torturava o coração de Raquel, pois o silêncio era o único que a respondia. As lágrimas haviam se esgotado e um pensamento de culpar a si própria por todo o ocorrido tentava sua sanidade. Subitamente, um calor reconfortante banhou sua face, trazendo tons vibrantes de escarlate. Era o pôr do sol, o tal fenômeno que Ricardo tanto falara. A estrela de quinta grandeza, indo gradativamente do laranja ao vermelho, distorcia a perspectiva parecendo muito maior do que de fato era. O horizonte, suavemente, migrava do vermelho para o rosa, que reluzia sobre qualquer matéria súdita de sua beleza. Raquel estava impressionada, tanto que se permitiu esquecer-se do tempo e de sua terrível situação. Seus olhos dançavam com o pôr do sol.
            - Sempre soube que você iria adorá-lo - Uma voz familiar ressurge.
            Certo tempo foi necessário para Raquel sair de sua contemplação, Ricardo faria questão de tirá-la. Ele, ao dirigir um sorriso ardiloso, requereu a opinião da moça acerca do fenômeno. Então, o aspecto fúnebre do cemitério retorna, tirando qualquer vestígio de encanto que possa ter sobrado em Raquel.
            - Acabou a brincadeira, Ricardo! Isso já foi longe demais!
            - Eu te disse que seria o melhor pôr do sol da sua vida, meu anjo. - Sua calma era assustadora.
            - Me tire daqui, Ricardo, agora!
            Ele rumou em direção a Raquel, mas hesitou de repente. A noite iniciava seu florescer e Ricardo pareceu ter parado somente para observar isso, farejou o ar profundamente e tomou pelas mãos um pedaço de madeira hasteado com o seu nome e o dela escrito.
            - O que é isso? - Raquel sentiu seu coração sufoca-lhe a garganta.
            - Isto? - Principia Ricardo, fixando seu olhar ao item grotescamente ornamentado - Isto é o símbolo que eternizará nossa história, minha querida, como uma capa de um livro. Neste cemitério abandonado, repousaremos nossos corpos e continuaremos em alma o nosso amor. - Neste momento, ele retira de seu bolso um frasco de veneno. - Será apenas eu e você, meu bem. Tudo o que preciso é esta prova de amor, esta última e indiscutível prova.
            O pranto retornou ao semblante de Raquel. Ela pediu, suplicou, pelo fim daquela loucura. No entanto, a frigidez de Ricardo era indistinguível com a luz do luar. Por mais que ela tentasse racionalizar com o seu opressor, ele parecia estar convicto da decisão. E, antes que uma lágrima pudesse percorrer dos olhos até o queixo, Ricardo aproximou-se da porta. Raquel sentiu sua estrutura tremer, quis olhar nos olhos de seu ex-namorado, mas tinha medo do que poderia encontrar neles. Preferiu olhar para a lápide.
            - Perdoe-me por ser de madeira e não de ouro. - Disse ele num tom decepcionado. As rugas concediam sombras profundas em seu rosto, tornando-o enigmático. Raquel ensaiou uma ordem, mas foi silenciada com o tilintar da chave oferecida a ela. Ricardo fintou o veneno e sorriu aliciante.
            A cativa tomou a chave e, por mais que a cautela fosse pretendida, não conseguia parar de tremer. O desespero lhe entorpecera o juízo, gerando um impulso estúpido, sucedido logo após o girar da chave, de correr - ou a tentativa de fazê-lo. Ricardo, contudo, não foi passivo à recusa, agarrou-a com uma força demoníaca e não se preocupou em deixar cair seus itens. Os dois dançaram tragicamente sob a noite. Raquel gritou de forma a sentir seus pulmões rasgarem, mas fora interrompida quando começou a ser estrangulada. O carcereiro lamentou o desprezo de sua amada:
            - Por que me maltrata assim, Raquel?
            Raquel concentrou o fôlego restante para aplicar uma cotovelada e desvencilhar-se de Ricardo. Porém, torceu o pé logo após investir a segunda fuga. Um espasmo de desespero sacudiu seu corpo, ela amaldiçoou a burrice de ter aceitado aquele convite. Ricardo, testemunhando seu amor, mesmo naquela situação, se afastando dele, aceita que uma lágrima desça no rosto. Então, uma nuvem obscureceu a lua e Ricardo sacou o último esforço de impor sua vontade sobre alguém: um revólver. Apenas um tiro e um clarão precoce invadindo a escuridão. O som do disparo reverberou junto com o gemido agonizante.
            Raquel desaba.
            Ricardo guardou a arma, recolheu o frasco, a lápide de madeira e seguiu para perto do corpo estirado de sua amada. Ele balançou a cabeça negativamente, como se lamentasse a atitude dela. A luz tornara-se minguante, mas era possível ouvir os grunhidos suprimidos, até silenciarem-se, induzindo a morte. Ricardo batalhou contra o choro, respirou fundo e cuidadosamente, próximo à cabeça de Raquel, fincou a lápide. Ajoelhou-se para acariciar o cabelo dela e, sem qualquer cerimônia, tomou do veneno, dizendo:
            - Espero pelo teu perdão no outro lado, minha Raquel. - O líquido fluiu pela garganta com acidez, mas sem oferecer dores. Ele se deitou paralelo a ela de forma a encará-la nos olhos. Seus membros amoleceram, um cansaço acompanhou o congelamento e a morte abraçou aquele ser. Ricardo sucumbiu, trazendo uma inquietude soberana.
            A nuvem pareceu falecer junto com Ricardo. A lua retornou seu brilho azulado e um suspiro seguiu a resplandecência noturna. Era Raquel. Ainda traumatizada, ela hesitou quaisquer movimentos, mas após certificar a morte do lunático, ergueu-se lutando contra a dor lancinante que sentia. O tiro perfurara as costas na altura do ombro direito, um ferimento incapaz de matá-la. Raquel, desesperadamente, havia forjado a própria morte para manter a vida.
            Ela seguiu precariamente rumo à saída do cemitério. Em nenhum momento quis olhar para trás. Mancando e com uma bala alojada no corpo, ela tentou recobrar a memória sobre o percurso tomado. E quando pensou estar a esmo, ouviu o som de crianças, que felizmente, ainda brincavam de ciranda. Raquel estava livre e salva.

            

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