FADE IN
Surge em plano a imagem de um ônibus em chegada. O local se apresenta, sem qualquer censura, como um bairro carente. Igualmente miseráveis são os ânimos das pessoas ao redor, não há som ambiente, tampouco o barulho dos pés apressados que aglomeram-se em volta do ônibus agora parado. Há apenas uma música soturna.
Tudo isso fede a rotina.
A vida seguindo terrivelmente devagar.
Desempregados famintos por um rumo perseguem, em ritmo de parasitas, um senhor que pode silenciar os urros de seus estômagos. Porém, esse senhor não tem consigo tantas oportunidades assim para saciar tantos. Ele dispõe, por ora, somente de poucas ofertas de emprego, as quais estritamente não se encaixam nos perfis de nenhum ser ali presente - Como se fosse o reluzir de uma desgraçada coincidência. Quem de fato é adequado para uma chance está avulso a aquela multidão pedinte; está situado a metros dali; e não ouve o seu nome sendo chamado.
- Ricci! Antonio Ricci!
E é assim que tudo começa...
ANTONIO RICCI (Lamberto Maggiorani) recebe a oferta de colador de cartazes, com a exclusiva condição de ter uma bicicleta própria para poder trabalhar. Após sacrificar a roupa de cama da família no objetivo de conseguir dinheiro para comprar uma bicicleta na loja de penhores, ele começa a trabalhar. Mas quando tudo parecia ter tomado o rumo da esperança, Antonio tem seu veículo roubado no primeiro dia de trabalho, desencadeando uma busca desesperada pela sua ferramenta de sustento.
Assistir Ladrões de Bicicletas (1948) é contemplar o máximo do movimento Neorrealista Italiano que surgiu nos anos 40, trazendo um olhar mais lúdico para o fazer do cinema naquele país, o qual ainda enfrentava as sequelas de um conflito armado mundial. Abdicar-se do glamour, exercer as filmagens em locações reais, misturar a eficiência de experientes atores com a naturalidade de novatos e relatar tramas que remetem a vida cotidiana, são alguns dos aspectos deste movimento (Considerado por muitos como um dos mais relevantes de toda a história do cinema). A película em questão, dirigida por Vittorio de Sica, se uniformiza de tais características, entregando um filme que levanta questões de cunho social e também de caráter pessoal, como obsessão e angústia.
Lamberto Maggiorani como Antonio Ricci |
No entanto, quero limitar o texto a certas observações que conferem a esse filme a categoria de magistral.
Pois então, a julgar pelo ritmo enérgico e pela postura ágil do filme em desenvolver uma trama instigante, Ladrões de Bicicletas consegue puxar para si observações variadas. Entre elas, se faz necessário mencionar a riqueza dramática presente em seu personagem principal, Antonio Ricci, e como é interessante ver tal personagem adquirindo mais densidade à medida que a história avança.
No início, Antonio é apresentado como uma figura sossegada e detentora de uma passividade acomodada. É possível perceber o resultado disso na forma que ele é introduzido em tela, meio que involuntariamente, ou seja, RICCI não vem até nós e diz:
- Olá, espectador.
Não.
É a câmera que vai até ele. E vale dizer o quanto isso é útil para demonstrar o crescimento de determinado personagem no decorrer de uma narrativa:
Ele começa no raso e calmo, como a água de uma psicina, e avança através dos degraus da história até adquirir a agitação que o faz se assemelhar com um oceano.
ALIÁS, durante os primeiros minutos de projeção, a figura de Antonio concede aspectos que desenham a sua já mencionada inércia comportamental (E voltando à cena introdutória - Antonio é filmado sentado tal como uma criança que hiberna na caverna de sua solitária imaginação, longe dos homens que procuravam emprego, alheio ao chamado e, assim, havendo a necessidade de ser alertado por um conhecido); Desse modo, podemos vislumbrar a dita passividade característica nele e, para efeitos de ilustração, podemos também testemunhar como sua esposa, Maria (Lianella Carell), logo depois, é quem toma a iniciativa de penhorar a roupa de cama da família.
"Pai, filho e bicicleta" |
Na composição de Maggiorani também estão traços de um homem jovial, dedicado à família e otimista para com o futuro. Toda essa confiança é roubada de seu semblante logo no primeiro dia de trabalho, no momento em que levam a bicicleta. A partir desse incidente, uma tormenta começa a ser tecida no Antonio, desencadeando nuvens de aflição, impotência e desespero.
Essas nebulosas transformações aplicam ao filme uma energia constante em volta da busca pelo veículo roubado. A obsessão para com o desfecho da procura é experimentada por cada cena posterior ao incidente, tendo como plano de fundo as ruas de uma Roma pós-guerra. Quem mais bebe da obsessão é justamente Antonio, e torna-se interessante ver como a angústia se intensifica conforme o desespero toma conta dele.
A película toma a liberdade de discutir, através desse conflito narrativo, certas relações humanísticas, como as ligadas com emprego, sociedade, criminalidade e também entre um pai e seu filho, Bruno Ricci (Enzo Staiola). Por isso, é relevante comentar a habilidade de Vittorio de Sica em construir satisfatoriamente todo esse espírito que representa o filme - como pôr o protagonista em meio a pessoas ou em planos mais amplos para acentuar sua pequenez; e também os diferentes espaçamentos existentes, e oscilantes, entre Antonio e Bruno, e como essas variações parecem exercer uma tensão narrativa; ou até mesmo em compor uma sequência com a estruturação de três atos explícita para narrar a sufocante Piazza Vittorio e a dimensão do conflito central.
Contudo, uma sequência que merece destaque e que sintetiza a excelência de Ladrões de Bicicletas, é aquela situada na Porta Portese. Vittorio, numa escolha inteligente, utiliza do significado e valor emocional da chuva para realçar a aflição e frustração de seus personagens. Antonio ensaia um início para sua desesperada procura, mas a já torrencial tempestade e a correria do povo em fuga atrapalham qualquer esforço. Ao fundo, um constante crescendo da trilha perturba e, mais uma vez, o trabalho corporal dos atores marca o desorientação dos personagens, pai e filho. A chuva, então, literalmente, pausa a perseguição e passa a desenvolver somente as dimensões internas relacionadas a quem procura a bicicleta. Quando a ultima gota, enfim, vai ao solo, Vittorio diminui a frustração de Antonio, lançando luz ao paradeiro da bicicleta, numa clara estruturação de escalada de tensão até uma recompensa.
O realizador repete tais estruturações em outras sequências, sempre adicionando novos componentes, necessários para o desenvolvimento da história. No meio dessas construções, ele abre espaço para abordar o momento daquela Itália, não se apoderando de um discurso escancarado, mas apenas mostrando em tela aquilo que era vero, exatamente o que o movimento Neorrealista tinha de principal característica.
Ladrões de Bicicletas é um trabalho sóbrio e tocante acerca da capacidade que um ser humano tem de reagir ao horripilante horizonte da penúria, revelando intenções (artísticas e sociais) de discutir sobre o proletariado e a sacrificante vida daqueles à margem dos abastados. Energético em seu desenvolvimento e realista em seu desfecho, o filme é certamente um dos mais relevantes de toda a história.
Quanto a Antonio Ricci: Este é uma personagem tridimensional à deriva de um complexo avalanche de sentimentos. A frustração e o desespero são ingredientes que moldam a densidade de sua mutação, levando-o para ações que às vezes não condizem com seu verdadeiro caráter e alinhamento, mas que são consequências de uma aguda angústia.
Supermente recomendado.