sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Deixe Que O Cristo Nos Diga O Limite Desta Cidade

Evaristo saltou da cama quando seu despertador, tocando pela sei lá das quantas milésima vez, o fez lembrar da responsabilidade que tem todas as manhãs, levar um O Retorno do Rei completo, versão estendida com comentários e tudo, para chegar ao que ele chama de ganha-pão - Pobre Odisseu. Porém, Evaristo não se ligou na última grande notícia bombástica divulgada, - o coitado lá tem tempo pra isso? - pois se tivesse, teria tomado conhecimento de uma mudança que muito lhe afeta.

Ele não é mais Carioca.

É! Até poucos dias atrás, mesmo sendo habitante do extremo-longe confundó do Judas, lugarzinho entre o limiar da Avenida Brasil e as extensas matas virgens gradativamente descabaçadas pelas viris fábricas de fumaças, Evaristo tinha o direito de dizer-se "Carioca" - Documentos asseguravam isso. Residente, com farto orgulho, da cidade do Corcovado, Pão de Açúcar e Copacabana, por mais que tais lugares fossem apenas vislumbrados através da janela do ônibus ou das novelas. Agora, no entanto, essa cidadania não existia mais. Isso parecia trazer um ar de caos, um ar de panelaços, um ar de pneus queimados interditando estradas e um ar de abandono muito mais abandonado do que o normal.

Não vieram ônibus que levassem para o trabalho; Não veio ordem que trouxesse de volta os ônibus que levassem para o trabalho; Tampouco, explicação sensata que entregasse qualquer ordem suportável; E se qualquer coisa passasse por ali, o protocolo era gritar:

- Não mais cariocas!

Os representantes das mídias com suas sofisticadas quinquilharias, como helicópteros, Drones e até um deturpador de realidade de última geração usado recentemente em alguma causa que merecesse adequar-se ao "padrão-do-cliente-mais-importante", chegaram para transmitir tal evento que a qualquer momento poderia substituir a novela naquele dia, e Copacabana não seria vista. Evaristo, perplexo e aporrinhado por uma desconfiança, perguntou para algum jornalista o que estava acontecendo, mas levou a seca resposta:

- Não mais cariocas!

Então, perguntou para um sujeito que derramava álcool sobre uma parede de pneus e papelão. Ele, porém, também disse:

- Não mais cariocas! - Ríspido e Boom, chamas.

Ciente do dia de serviço perdido e preocupado se poderia ser demitido pela "incapacidade de chegar ao trabalho por causa de um caos bobinho", diria seu chefe, nosso amigo retornou para casa em busca de montar bom argumento. Talvez mais um parente morto por uma bala perdida ou outra enchente de descaso conscientemente exercido, ajudariam na peleja que é não transar com a pindaíba. Antes de solidificar a desculpa escolhida, pasmou-se ao ver, pelo noticiário mesmo, um motivo mais extraordinário, original e real para o alvoroço:

"Que belo dia para ter um protesto, não? Que belo dia para ser carioca, não? Ah, melhor dia ainda para dizer "Não mais cariocas!", não? Foi aprovado, finalmente, o projeto de lei que há tanto tempo a cidade maravilhosa clamava, feito por paladinos comprometidos com uma coerência nada equivocada e estúpida, mas visionária e sadia para as vistas. O Projeto 'Tem Cristo, é Rio' tem como objetivo, e falo isso com uma alegria juvenil, re-mapear, e a essa altura já re-mapeou, a cidade do Rio de Janeiro para novos parâmetros que são convenientes aos interesses de uma meia-dúzia samaritana que entende as necessidades da capital.
 
Tá vendo aquela estátua de pedra-sabão lá no alto do Corcovado? Ali. Isso. Consegue? Se sim, fique tranquilo, o Rio de Janeiro ainda é o seu lugar. Parabenizo, aliás, pelo ótimo gosto em escolher seu bairro e por ser este cidadão exemplar, não precisando nem conhecê-lo para dizer que és muito civilizado, sim. Agora, se você não consegue vê-la de jeito nenhum, nem a lasquinha do dedo do meio ou ela lhe dando as costas, pode ver, ao menos, o meu lamento cinicamente scriptado para informar que a cidade das belezas naturais não é mais para você. Não tenho dito isso eu, mas, sim, o próprio Cristo!
 
É claro que há lugares deploráveis capazes de vislumbrar a estátua. Essas eternas pedras no sapato do desenvolvimento, que tiveram o atrevimento de estar no lugar certo da segregação certa, possuem o texto como proteção. Entretanto, convenhamos, é muito mais fácil cuidar de 2 do que 20, imagina 2000. E acaba sendo importante para o projeto, mostrar que há o interesse de agregar alguns subalternos ao plano do Éden.
 
O Rio agora é a cidade do metrô, da cultura, do grupo estação, do lazer, da boniteza, dos ônibus com TV e ar condicionado e das novelas do Manoel Carlos. A mancha rubra do cão, a cor de tijolo sem emboço, a feiúra das linhas de trem,  a ausência da brisa para a catinga de esgoto e a vivência da lamentação, não mais serão um fardo para a cidade, não mais atrasarão, não mais cariocas serão. Pro lado de cá, tudo continua, pro lado de lá, a rotineira atenção nunca concedida, ou seja, nada muda. O projeto abrirá exceções lógicas, calma civilizados injustiçados! Alguns bairros fiéis aos requisitos serão re-agregados e ganharão até uma projeção digital do homem de Nazaré. No mais, daqui para frente, surgirá um mar de transformações que trarão a nós a tão sonhada ordem e o tão adiado progresso.
 
Aos ex-cariocas, aviso que nossa transmissão terminará agora, em definitivo, para sempre. Não fazemos nem questão de ir recolher nossas coisas por aí, podem ficar. Foi um desprazer tê-los convivido e fique sabendo que é um alívio o corcovado não ser mais alto e o Cristo, maior.
 
Fiquem com suas respectivas programações normais."

Evaristo achou aquele argumento genial para justificar sua falta, mas de nada mais valia, o único prêmio recebido pela retórica fora um: Você está demitido. Motivo? Mora mais longe do que há um dia atrás. De sua varanda, o Cristo não lhe oferecia nada, nem as costas e nem uma esperança. Ele não ousou pensar que Cristo, não o símbolo segregador, tenha abandonado toda aquela gente, mas alguns outros, mortais e responsáveis, com certeza abandonaram. Nosso Evaristo sentiu raiva invadindo. Raiva não por perder o emprego ou o canal de TV, não pelo fedor de pneu queimado impregnando ou pela exclusão - até porque todos ali já eram excluídos há muito tempo. A raiva invadiu porque foi traído o orgulho, arrancando a cidadania de morador da cidade maravilhosa como se fosse desapropriar qualquer moradia feia. No entanto, ele tinha certeza que o panelaço e a fumaça continuariam até alguém prestar atenção, nem que o próprio Cristo e o Corcovado aumentassem...

Ou se mudassem pro lado de lá.

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