quinta-feira, 24 de março de 2016

O Nome do Vento - Um Exemplo de Maestria no Ofício do Storytelling

Escrito pelo norte-americano Patrick Rothfuss e lançado no Brasil em 2009, O Nome do Vento faz parte de "A Crônica do Matador do Rei", sendo este o primeiro volume de uma trilogia (ainda não selada).

Kvothe e seu fiel alaúde, com a Universidade ao fundo.

O enredo conta a vida e os mais diversos feitos de Kvothe, um sujeito cujo seu nome apenas traz à tona inúmeras lendas. A história é relatada pelo próprio personagem principal para um cronista transformá-la em um livro, com a condição incorruptível de não censurar coisa alguma. Gradativamente, os diversos equívocos envolvendo a figura de Kvothe vão sendo desmascarados, apresentando uma vida sofrida, perigosa e musical, e ao mesmo tempo, revelando um homem brilhante, ambíguo e calculista. Três dias são suficientes para contar tudo. Eis então, o primeiro dos três: O Nome do Vento. O Primeiro Dia.

Quem me conhece, com certeza esteve em alguma situação a qual eu citei esse livro. Por incontáveis jeitos ele foi significativo para mim, mas o que mais se destacou foi a riqueza e a beleza na escrita do Patrick Rothfuss. Em seu livro de estréia, Rothfuss consegue entregar um romance de fantasia num excepcional êxito do ofício de Storytelling. Ele mexe com camadas complexas e uma estrutura detentora de armadilhas cruéis a qualquer estreante, trabalhando com vários personagens ao longo do plot, sem demonstrar insegurança ou perda do controle de sua narrativa.

As decisões de Rothfuss se mostram conscientes. Sua paciência no trabalho de desenvolvimento é fria e calculista, assim como Kvothe. Isso é denunciado muitas vezes ao longo das páginas. A voz do narrador, por exemplo, é dividida entre Interlúdios, compostos por uma voz em terceira pessoa, e os relatos de Kvothe para o Cronista, em primeira pessoa. Isso faz com que o texto não perca fôlego e, como demonstração de não ser simplesmente uma decisão avulsa, Patrick também extrai dessa estrutura certos cortes dramáticos ou insights que prendem a atenção do leitor.

Tratando-se de história, as páginas deste primeiro volume realizam uma trilha minuciosa através da vida de Kvothe, como a infância sendo membro de uma trupe e muito bem amado pela família e amigos. Logo depois, passa pelo sofrimento inerente à perda de entes queridos. E por fim, a sua escalada penosa para conseguir, ainda na adolescência, ingressar na Universidade e se manter nela com quase nenhum tostão no bolso. Durante o desenvolvimento, os infortúnios, as descobertas e reviravoltas vão enriquecendo as características desse mundo fantástico e sustentando a vontade de virar as páginas. Os mistérios do Chandriano, a arte da nomeação ou a relevância da música para desenvolver a obra - seja nas tradicionais cantigas ou em pontos mais sutis -, são alguns desses sustentadores. Aliás, o papel da música nesta obra é belo e de uma eficiência sensorial incrível. Ela não apenas trata a habilidade de Kvothe com o seu fiel alaúde como um mero detalhe em sua ficha, mas também como um fio condutor da trama. Desse fato saem situações narrativas simplesmente mágicas, como a apresentação de Kvothe na Eólica, que foi uma experiência singular - posso jurar que ouvi cada acorde daquela música.

Deve-se reintegrar, então, a qualidade da prosa. Seja Kvothe, seja Patrick, há uma riqueza poética empregada na obra. O texto se permite um olhar pessoal e, às vezes, até filosófico sobre os conflitos e conquistas do personagem. Isso é reforçado pelo fato de Kvothe, no tempo em que narra sua vida, ter escolhido se tornar num homem mergulhado na mediocridade. Portanto, sendo agora um mero dono de uma estalagem quase deserta, situada num local em que as coisas vão devagar por quase se tratar de dom, ele procura esquecer-se do seu antigo eu. Mas por trás dessa casca fatigada existe uma história de conquistas e feitos extraordinários. 

O mundo d'A Crônica do Matador do Rei, assim como qualquer universo ficcional bem elaborado, é composto de regras rígidas, sobretudo no que concerne ao uso de sua magia. E ao invés de levar essa tradicional denominação ao pé da letra, ou seja, "é magia porque é magia", aqui testemunhamos ela com múltiplos nomes e finalidades, como "Simpatia", "Nomeação" e "Siglística", cada uma com suas regras e metodologias de estudo e dominação. A "magia" em si, se comporta de maneira custosa para com o seu invocador, requerendo métodos e materiais que cobram preços físicos, monetários e mentais. Se torna evidente perceber a ampla pesquisa realizada pelo autor para criar essas regras, exatamente para embasar as verossimilhanças, por mais que ainda remotas, com as ciências do nosso mundo, como a física, medicina, química etc.

O ofício da nomeação se destaca por apresentar um conceito fantástico que parte de uma ideia simples, mas que carrega uma interessante finalidade. Não é de meu agrado estragar surpresas, mas saiba que as coisas, como os elementos, por exemplo, possuem seus nomes. Nomes verdadeiros, não os que nós demos à elas. Se o arcanista souber e for capaz de aprender esse nome real, ele consegue usar tal coisa ao seu favor. Então, aquele que souber o nome do vento, saberá controlá-lo.

Há naturais comparações, e outras um tanto quanto equivocadas, dessa série com a criada por J. K. Rowling, Harry Potter, a qual sou fã também. E de fato existem, sim, semelhanças entre as duas séries, porém, o que as diferem sistematicamente são as suas abordagens. Seria limitado de minha parte resumir as diferenças, dizendo que A Crônica do Matador de Rei é "um Harry Potter para adultos". Todavia, no fundo me pego imaginando o quanto seriam diferentes as minhas lembranças de Hogwarts, se certas coisas recorrentes na Universidade acontecessem com o Harry. Talvez seja por isso que cunharam esse termo. Porém, são nítidos os momentos em que O Nome do Vento se distancia por completo de Harry Potter, fazendo isso com a segurança de um sábio ancião.

Já em outro cenário, existe uma tonelada de comparações e disputas da série de Patrick Rothfuss com As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin. Mas tal disputa é um equívoco ainda mais descabido. Além do mais, o respeito e o tratamento de "sou fã desse cara" é mútuo entre os dois.

O Nome do Vento possui seus próprios méritos. É um trabalho instigante e belo, com todas as doses que uma aventura de fantasia pode proporcionar. Estou pronto para embarcar no segundo dia de relatos de Kvothe, ansioso para descobrir mais sobre este grande personagem. Deixo aqui minha recomendação. 

Nota importante: Não tente chamar o nome do vento se não estiver devidamente preparado para isso. Você pode cair duro no chão enquanto é aprisionado no mais fundo calabouço da sua mente e, na melhor das hipóteses, morrer. Fique avisado.

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