Tendo se deixado levar pelo fluxo venenoso da rotina, Calixto assistiu sua vida perder o rumo. O casamento ficou no meio do caminho, a casa inundou-se de poeira e lembranças cada vez mais melancólicas, e o pequeno fruto dessa união fracassada, distanciado. Gradativamente, com um perigoso vigor, a vida desse homem mergulha em um oceano de caos. É como se quem devesse manter a ordem do mundo estivesse se ausentado; se retirado por tempo suficiente para que tudo saísse dos trilhos, como se Deus tivesse saído para almoçar.
O escritor paulista, Ferréz, conduz com um jeito incomum - pelo menos para mim - a crescente desgraça de Calixto nesta obra de voz pessimista. As abruptas alterações entre narrações em primeira e terceira pessoa, a ausência de marcações para diálogos e as compridas orações, por vezes compondo um parágrafo inteiro, são representações condizentes com o caos que o protagonista se encontra.
Calixto é um homem que enfrenta a crise da meia idade, enquanto organiza de forma pragmática um arquivo de documentos, seu emprego. Praticamente solitário, ele dispõe-se apenas de uma verdadeira amizade, Lourival, uma espécie de alter ego do próprio autor. O resto se resume em relações obrigatórias e fatigosas, frustrações em fugas sexuais, uma velada paixão por uma vizinha lavadora de calçada e as lembranças de seu passado. Um personagem incapaz de distinguir um dia do outro.
O ritmo da leitura torna-se feroz devido aos breves parágrafos e capítulos, conduzidos por uma ágil escrita de Ferréz, repleta de reflexões existencialistas e uma melancolia infecciosa. Essa agilidade, aliás, acaba por dar à obra uma roupagem interessante, como se tudo fosse um amontoado de pequenos retratos, um compilado de eventos que se aprofunda, sem qualquer censura, na caótica vida de Calixto - e também um pouco na vida do amigo, Lourival. São olhares para o passado e presente, incumbindo o leitor de realizar as comparações e julgar a postura do personagem, que em nenhum momento se mostra digno da alcunha de bom Samaritano, ou pobrezinho. O futuro também passa a ter o seu esboço traçado, pois conforme a trama e a obscuridade avançam, é brotada uma preocupação quanto ao desfecho de tudo, em como será o meio para alcançar o tão distante alívio.
A ambientação da trama também carrega uma significativa relevância para mostrar a asfixia existencial de Calixto. Situada no subúrbio, os lugares presentes na obra ganham uma monotonia intencionalmente desinteressante e antipática. Isso se contrapõe nos momentos de lembranças do passado, onde havia família e esperança. No entanto, é nítido perceber o gradual desgaste do otimismo. Por outro lado, a repetição dos locais acentua o aspecto de rotina, como o lavar constante de uma calçada que nunca de fato fica limpo, ou o pragmatismo de um serviço de arquivar documentos. E também são testemunhados motéis decrépitos, putas horrendas e um sexo fracassado que te escandaliza. Não há qualquer local na trama que ofereça conforto, apenas opressão, como se do piso ao teto, do asfalto ao céu, houvesse um metro de distância.
Além disso, acho que não seria absurdo algum levantar um paralelo, que de nada tem o intuito de comparar, entenda bem, mas de pôr numa mesma prateleira, se posso assim dizer, esta obra e o filme Clube da Luta (1999), dirigido por David Fincher e estrelado por Brad Pitt e Edward Norton. Isso, sobretudo, por causa do personagem Lourival, amigo de Calixto, que se apresenta como um indivíduo compulsivo em acumular bens, principalmente os ligados à cultura pop, como action figures, filmes, CDs, jogos etc. Suas buscas para completar uma coleção têm a dinâmica de uma caça ao tesouro, onde a recompensa é superficial e o prazer, passageiro. Afinal, a felicidade jamais oferece-lhe a face, as coleções aglomeram-se em sua casa, precária, e o grande propósito dado à vida dele age como um ingrato soberbo. E quando o filme de 1999 põe em discussão a superficialidade de uma geração que baseia sua vida na filosofia "pra ser eu tenho que ter", e quando se percebe traída pela busca da felicidade e a satisfação plena, entrega-se a propósitos e organizações radicais, como um clube de lutas clandestinas. Lourival não entra pra nenhuma seita ou sai na porrada com ninguém, mas no final ele toma um caminho que muito decepciona Calixto.
Portanto, Deus foi almoçar é um trabalho de tocante e corajosa escrita. Apesar da chatice que às vezes é encarar a personalidade de seu protagonista, a obra tem seus méritos em nos oferecer uma experiência fora do convencional e, mesmo assim, ainda conseguir nos comover com eficiência. Não é uma história alegre, mas com certeza uma experiência reflexiva. Eu recomendo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário