Heitor teria evitado a trilha de fumaça que se adensava à sua frente se não fosse esse tom de cinza que nos guia. Fazia tempo que ele se locomovia. Um tempo suficientemente longo para levar à cabeça de qualquer andarilho que pensar demais em planejamentos é, de forma não justa e indireta, planejar-se rumo ao imprevisível. E aconteceu assim com o bem instruído Heitor: o vislumbre de seus pés tomando o caminho da fumaça, pelo simples fato de ter se interessado pela personalidade e aparência que ela ostentava. A improbabilidade incitada o abraçava sem asfixiar e o levava com o mesmo zelo de uma mãe que auxilia os primeiros passos do filho. A rota, no entanto, tinha pouca coisa a ver com simbolismos poéticos e subjetividades, pois o seu cume era o fogo - o mais literal e cruel dos desfechos.
Quando o foco se revelou, Heitor estremeceu ao sentir seu coração embargar. Por um momento ele checou a respiração, porque só agora se preocupara com uma intoxicação. Mas os pulmões iam bem. Por fora, seu corpo estava infestado por bilhões de partículas negras, as quais foram afugentadas aos tapas - um esforço inútil, porém. Então ele se ateve em digerir toda aquela quantidade de informação, espiando por cima dos ombros na desconfiança de se descobrir dentro de um sonho. As chamas produziam crepitações que mais pareciam retumbos, a julgar pelo tamanho que apresentavam, tão altas e ferozes quanto um incêndio florestal deveria fazer. Troncos gemiam ao redor, ruídos penosos que assustaram o rapaz num primeiro instante, mas que depois tornaram-se imperceptíveis. Era um ambiente tomado por danos difíceis de serem freados, e Heitor soube disso desde o instante em que chegara. Ele olhou para o solo de relvas enegrecidas e rasgadas pelo fogo, e, desprovido de ensaios, rumou para os confins da desolação, com os olhos semi-cerrados por causa do calor que não o consumia. E desvanecendo-se para dentro daquele cenário, ele gentilmente acolheu a boa noite como um obediente sábio.
Mais adiante, no interior da conflagração, não fora possível distinguir as dicotomias que formam o mundo e, sim, apenas testemunhar os mistérios que lá povoam. Dentre os diversos, um se sobressaiu. Ele originava-se das copas e despencava para o chão: folhas e mais folhas, em brasa, formando uma extravagante chuva que bailava com as lambidas do fogo, e desfazia-se antes de completar seu trajeto. Um fenômeno simplesmente lindo para as retinas, o que neste caso se limitavam as pertencentes ao Heitor, que tinha mudado seu semblante para uma expressão que cambaleava entre o prazer e a estupefação. De repente, as folhagens casaram-se com o ritmo oriundo dos gemidos das árvores consumidas, numa poligamia intensa e exótica, compondo um espetáculo que jamais poderá ser repetido senão pela natureza. Houve uma harmonia orgânica invadindo o lugar e Heitor a ouviu com todo o seu coração. Isso tudo poderia durar uma vida inteira ou apenas um segundo que não iria fazer qualquer diferença para ele, pois dentro de si um clamor pairava: "O momento... o momento...".
O formidável fenômeno teve seu fim quando a chuva finalmente conseguiu tocar o solo ardente. Um vento suave soprou as folhas chamuscadas e as amontoou, como se estivesse varrendo. Heitor principiou algumas lágrimas que iam sendo evaporadas antes de alcançar as bochechas. Elas logo deixaram de ser produzidas quando um estrondo, proveniente da folhagem amontoada, o sobressaltou e arrepiou-lhe o cabelo crespo. A harmonia sucumbiu sob a hegemonia dos gemidos; e as chamas, sabe lá Deus como, ficaram ainda maiores. O rapaz espionou a vanguarda por entre as brechas da fumaça densa e sentiu sua respiração parar - não por causa do incêndio; não por causa de nenhum motivo que ele fosse capaz de conjecturar.
Ele avistara um corpo, mais precisamente um corpo de uma mulher, repousando sobre a relva consumida.
Ocorreu um momento de hesitação, custeado pelo pânico, que deixou Heitor imóvel e com seu consciente e subconsciente preso àquela imagem. Por outro lado, a indiferença da queimada quanto ao peso de tal cena, a fez, sem cerimônias, navalhar um tronco. Se não fosse o modo com o qual caíra, o robusto cilindro teria esmagado o corpo e confeccionado um patê de sangue, carne e ossos. Heitor manifestou sua preocupação no instante em que conseguiu despir-se da imobilidade e disparar em direção ao ser desamparado, enquanto as partículas negras desenhavam um rastro às suas costas. Ao chegar perto da moça, ele constatou que ela estava viva, fato que o aliviou e o espantou em igual dose. Ele agachou-se e a tomou pelos braços, como em uma pintura romancista; por um instante pensou que poderia protegê-la, que poderia salvá-la. Porém, quando no rosto daquele ser Heitor pousou os olhos, todo esse controle se extinguiu. Não lhe veio forças, apenas fogo e mais fogo... até que consumiu seu coração e cercou-os.
Um grito ensurdecedor irrompeu na floresta, quebrando as labaredas ao meio. Tinha sido Heitor que o produzira como consequência de uma dor insuportável. Ele gritava continuamente, como se a qualquer momento fosse cuspir suas tripas. As chamas encolhiam conforme o grito persistia. O rapaz, ao perceber que o seu bramido surtia efeito sobre elas, escolheu manter o urro estridente até que dissipassem-nas por completo. O esforço o enfraquecia e o vertiginava, mas mesmo assim, ele persistia urrando, como um terremoto vindo do oriente. As vistas, gradualmente, foram escurecendo por conta de tamanha sobrecarga ininterrupta, ao passo que as cordas vocais já sangravam. Testemunhando tal sacrifício suicida, a moça levou sua mão ao rosto dele, num toque macio em oposição àquela agressividade bondosa; e, de maneira repentina, o grito foi cessado. Heitor se indignou com o que ela acabara de fazer, e por isso ficou a encarando com um olhar impotente e encharcado de lágrimas. A moça não disse palavra alguma, pelo contrário, apenas devolveu o olhar; e pôs-se a acariciá-lo, como se estivesse limpando toda aquela sujeira e atenuando as veias dilatadas. Nos lábios, um sorriso tímido e triste, mas também detentor de uma satisfação, germinou. Heitor abanou a cabeça, arremessando as lágrimas ao ar. Mas ela continuou sorrindo. Então, após tanto fixar suas retinas naquela beleza simples, rara e verdadeira, o rapaz notou algo no âmago daquelas esferas castanhas, algo de cor quente e feroz que se misturava à formosura.
Um incêndio.
Quando o foco se revelou, Heitor estremeceu ao sentir seu coração embargar. Por um momento ele checou a respiração, porque só agora se preocupara com uma intoxicação. Mas os pulmões iam bem. Por fora, seu corpo estava infestado por bilhões de partículas negras, as quais foram afugentadas aos tapas - um esforço inútil, porém. Então ele se ateve em digerir toda aquela quantidade de informação, espiando por cima dos ombros na desconfiança de se descobrir dentro de um sonho. As chamas produziam crepitações que mais pareciam retumbos, a julgar pelo tamanho que apresentavam, tão altas e ferozes quanto um incêndio florestal deveria fazer. Troncos gemiam ao redor, ruídos penosos que assustaram o rapaz num primeiro instante, mas que depois tornaram-se imperceptíveis. Era um ambiente tomado por danos difíceis de serem freados, e Heitor soube disso desde o instante em que chegara. Ele olhou para o solo de relvas enegrecidas e rasgadas pelo fogo, e, desprovido de ensaios, rumou para os confins da desolação, com os olhos semi-cerrados por causa do calor que não o consumia. E desvanecendo-se para dentro daquele cenário, ele gentilmente acolheu a boa noite como um obediente sábio.
Mais adiante, no interior da conflagração, não fora possível distinguir as dicotomias que formam o mundo e, sim, apenas testemunhar os mistérios que lá povoam. Dentre os diversos, um se sobressaiu. Ele originava-se das copas e despencava para o chão: folhas e mais folhas, em brasa, formando uma extravagante chuva que bailava com as lambidas do fogo, e desfazia-se antes de completar seu trajeto. Um fenômeno simplesmente lindo para as retinas, o que neste caso se limitavam as pertencentes ao Heitor, que tinha mudado seu semblante para uma expressão que cambaleava entre o prazer e a estupefação. De repente, as folhagens casaram-se com o ritmo oriundo dos gemidos das árvores consumidas, numa poligamia intensa e exótica, compondo um espetáculo que jamais poderá ser repetido senão pela natureza. Houve uma harmonia orgânica invadindo o lugar e Heitor a ouviu com todo o seu coração. Isso tudo poderia durar uma vida inteira ou apenas um segundo que não iria fazer qualquer diferença para ele, pois dentro de si um clamor pairava: "O momento... o momento...".
O formidável fenômeno teve seu fim quando a chuva finalmente conseguiu tocar o solo ardente. Um vento suave soprou as folhas chamuscadas e as amontoou, como se estivesse varrendo. Heitor principiou algumas lágrimas que iam sendo evaporadas antes de alcançar as bochechas. Elas logo deixaram de ser produzidas quando um estrondo, proveniente da folhagem amontoada, o sobressaltou e arrepiou-lhe o cabelo crespo. A harmonia sucumbiu sob a hegemonia dos gemidos; e as chamas, sabe lá Deus como, ficaram ainda maiores. O rapaz espionou a vanguarda por entre as brechas da fumaça densa e sentiu sua respiração parar - não por causa do incêndio; não por causa de nenhum motivo que ele fosse capaz de conjecturar.
Ele avistara um corpo, mais precisamente um corpo de uma mulher, repousando sobre a relva consumida.
Ocorreu um momento de hesitação, custeado pelo pânico, que deixou Heitor imóvel e com seu consciente e subconsciente preso àquela imagem. Por outro lado, a indiferença da queimada quanto ao peso de tal cena, a fez, sem cerimônias, navalhar um tronco. Se não fosse o modo com o qual caíra, o robusto cilindro teria esmagado o corpo e confeccionado um patê de sangue, carne e ossos. Heitor manifestou sua preocupação no instante em que conseguiu despir-se da imobilidade e disparar em direção ao ser desamparado, enquanto as partículas negras desenhavam um rastro às suas costas. Ao chegar perto da moça, ele constatou que ela estava viva, fato que o aliviou e o espantou em igual dose. Ele agachou-se e a tomou pelos braços, como em uma pintura romancista; por um instante pensou que poderia protegê-la, que poderia salvá-la. Porém, quando no rosto daquele ser Heitor pousou os olhos, todo esse controle se extinguiu. Não lhe veio forças, apenas fogo e mais fogo... até que consumiu seu coração e cercou-os.
Um grito ensurdecedor irrompeu na floresta, quebrando as labaredas ao meio. Tinha sido Heitor que o produzira como consequência de uma dor insuportável. Ele gritava continuamente, como se a qualquer momento fosse cuspir suas tripas. As chamas encolhiam conforme o grito persistia. O rapaz, ao perceber que o seu bramido surtia efeito sobre elas, escolheu manter o urro estridente até que dissipassem-nas por completo. O esforço o enfraquecia e o vertiginava, mas mesmo assim, ele persistia urrando, como um terremoto vindo do oriente. As vistas, gradualmente, foram escurecendo por conta de tamanha sobrecarga ininterrupta, ao passo que as cordas vocais já sangravam. Testemunhando tal sacrifício suicida, a moça levou sua mão ao rosto dele, num toque macio em oposição àquela agressividade bondosa; e, de maneira repentina, o grito foi cessado. Heitor se indignou com o que ela acabara de fazer, e por isso ficou a encarando com um olhar impotente e encharcado de lágrimas. A moça não disse palavra alguma, pelo contrário, apenas devolveu o olhar; e pôs-se a acariciá-lo, como se estivesse limpando toda aquela sujeira e atenuando as veias dilatadas. Nos lábios, um sorriso tímido e triste, mas também detentor de uma satisfação, germinou. Heitor abanou a cabeça, arremessando as lágrimas ao ar. Mas ela continuou sorrindo. Então, após tanto fixar suas retinas naquela beleza simples, rara e verdadeira, o rapaz notou algo no âmago daquelas esferas castanhas, algo de cor quente e feroz que se misturava à formosura.
Um incêndio.
- Me perdoa - foi o que se ouviu e mais nada, senão a dor de uma floresta há muito atormentada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário