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domingo, 2 de outubro de 2016

O Circundar de um Fogo

Heitor teria evitado a trilha de fumaça que se adensava à sua frente se não fosse esse tom de cinza que nos guia. Fazia tempo que ele se locomovia. Um tempo suficientemente longo para levar à cabeça de qualquer andarilho que pensar demais em planejamentos é, de forma não justa e indireta, planejar-se rumo ao imprevisível. E aconteceu assim com o bem instruído Heitor: o vislumbre de seus pés tomando o caminho da fumaça, pelo simples fato de ter se interessado pela personalidade e aparência que ela ostentava. A improbabilidade incitada o abraçava sem asfixiar e o levava com o mesmo zelo de uma mãe que auxilia os primeiros passos do filho. A rota, no entanto, tinha pouca coisa a ver com simbolismos poéticos e subjetividades, pois o seu cume era o fogo - o mais literal e cruel dos desfechos.

Quando o foco se revelou, Heitor estremeceu ao sentir seu coração embargar. Por um momento ele checou a respiração, porque só agora se preocupara com uma intoxicação. Mas os pulmões iam bem. Por fora, seu corpo estava infestado por bilhões de partículas negras, as quais foram afugentadas aos tapas - um esforço inútil, porém. Então ele se ateve em digerir toda aquela quantidade de informação, espiando por cima dos ombros na desconfiança de se descobrir dentro de um sonho. As chamas produziam crepitações que mais pareciam retumbos, a julgar pelo tamanho que apresentavam, tão altas e ferozes quanto um incêndio florestal deveria fazer. Troncos gemiam ao redor, ruídos penosos que assustaram o rapaz num primeiro instante, mas que depois tornaram-se imperceptíveis. Era um ambiente tomado por danos difíceis de serem freados, e Heitor soube disso desde o instante em que chegara. Ele olhou para o solo de relvas enegrecidas e rasgadas pelo fogo, e, desprovido de ensaios, rumou para os confins da desolação, com os olhos semi-cerrados por causa do calor que não o consumia. E desvanecendo-se para dentro daquele cenário, ele gentilmente acolheu a boa noite como um obediente sábio.

Mais adiante, no interior da conflagração, não fora possível distinguir as dicotomias que formam o mundo e, sim, apenas testemunhar os mistérios que lá povoam. Dentre os diversos, um se sobressaiu. Ele originava-se das copas e despencava para o chão: folhas e mais folhas, em brasa, formando uma extravagante chuva que bailava com as lambidas do fogo, e desfazia-se antes de completar seu trajeto. Um fenômeno simplesmente lindo para as retinas, o que neste caso se limitavam as pertencentes ao Heitor, que tinha mudado seu semblante para uma expressão que cambaleava entre o prazer e a estupefação. De repente, as folhagens casaram-se com o ritmo oriundo dos gemidos das árvores consumidas, numa poligamia intensa e exótica, compondo um espetáculo que jamais poderá ser repetido senão pela natureza. Houve uma harmonia orgânica invadindo o lugar e Heitor a ouviu com todo o seu coração. Isso tudo poderia durar uma vida inteira ou apenas um segundo que não iria fazer qualquer diferença para ele, pois dentro de si um clamor pairava: "O momento... o momento...".

O formidável fenômeno teve seu fim quando a chuva finalmente conseguiu tocar o solo ardente. Um vento suave soprou as folhas chamuscadas e as amontoou, como se estivesse varrendo. Heitor principiou algumas lágrimas que iam sendo evaporadas antes de alcançar as bochechas. Elas logo deixaram de ser produzidas quando um estrondo, proveniente da folhagem amontoada, o sobressaltou e arrepiou-lhe o cabelo crespo. A harmonia sucumbiu sob a hegemonia dos gemidos; e as chamas, sabe lá Deus como, ficaram ainda maiores. O rapaz espionou a vanguarda por entre as brechas da fumaça densa e sentiu sua respiração parar - não por causa do incêndio; não por causa de nenhum motivo que ele fosse capaz de conjecturar.

Ele avistara um corpo, mais precisamente um corpo de uma mulher, repousando sobre a relva consumida.

Ocorreu um momento de hesitação, custeado pelo pânico, que deixou Heitor imóvel e com seu consciente e subconsciente preso àquela imagem. Por outro lado, a indiferença da queimada quanto ao peso de tal cena, a fez, sem cerimônias, navalhar um tronco. Se não fosse o modo com o qual caíra, o robusto cilindro teria esmagado o corpo e confeccionado um patê de sangue, carne e ossos. Heitor manifestou sua preocupação no instante em que conseguiu despir-se da imobilidade e disparar em direção ao ser desamparado, enquanto as partículas negras desenhavam um rastro às suas costas. Ao chegar perto da moça, ele constatou que ela estava viva, fato que o aliviou e o espantou em igual dose. Ele agachou-se e a tomou pelos braços, como em uma pintura romancista; por um instante pensou que poderia protegê-la, que poderia salvá-la. Porém, quando no rosto daquele ser Heitor pousou os olhos, todo esse controle se extinguiu. Não lhe veio forças, apenas fogo e mais fogo... até que consumiu seu coração e cercou-os.

Um grito ensurdecedor irrompeu na floresta, quebrando as labaredas ao meio. Tinha sido Heitor que o produzira como consequência de uma dor insuportável. Ele gritava continuamente, como se a qualquer momento fosse cuspir suas tripas. As chamas encolhiam conforme o grito persistia. O rapaz, ao perceber que o seu bramido surtia efeito sobre elas, escolheu manter o urro estridente até que dissipassem-nas por completo. O esforço o enfraquecia e o vertiginava, mas mesmo assim, ele persistia urrando, como um terremoto vindo do oriente. As vistas, gradualmente, foram escurecendo por conta de tamanha sobrecarga ininterrupta, ao passo que as cordas vocais já sangravam. Testemunhando tal sacrifício suicida, a moça levou sua mão ao rosto dele, num toque macio em oposição àquela agressividade bondosa; e, de maneira repentina, o grito foi cessado. Heitor se indignou com o que ela acabara de fazer, e por isso ficou a encarando com um olhar impotente e encharcado de lágrimas. A moça não disse palavra alguma, pelo contrário, apenas devolveu o olhar; e pôs-se a acariciá-lo, como se estivesse limpando toda aquela sujeira e atenuando as veias dilatadas. Nos lábios, um sorriso tímido e triste, mas também detentor de uma satisfação, germinou. Heitor abanou a cabeça, arremessando as lágrimas ao ar. Mas ela continuou sorrindo. Então, após tanto fixar suas retinas naquela beleza simples, rara e verdadeira, o rapaz notou algo no âmago daquelas esferas castanhas, algo de cor quente e feroz que se misturava à formosura.

Um incêndio.

- Me perdoa - foi o que se ouviu e mais nada, senão a dor de uma floresta há muito atormentada.

sábado, 28 de maio de 2016

O Paradoxo

Ela e ele estavam no fim corredor. Bem, talvez não fosse o fim exatamente, levando em conta a figura de uma escada sob uma débil iluminação, situada logo além deles. Aquilo muito bem poderia ser o começo do corredor, aquilo muito bem poderia ser eles, dentro daquela escuridão conveniente e longe dos olhares dos quais fugiam. Na prática, essa ideia não havia passado na cabeça dele, ela, porém, achou que sim, então ele passou a achar que sim, ele quis que sim, quis que ocorresse. Mesmo contra a vontade unânime de seus corações, eles escolheram o fim ao invés do começo, e portanto pararam em uma porta. Por simplesmente ser quase impossível fazer o que ansiavam, escolheram a luz.

O percurso até lá, em si, nascera encharcado de cautela e preocupações, já que ele tinha diversos significados, especialmente os ligados ao desejo de fuga. Muito mal sabiam eles que a liberdade jamais brilharia de forma habitual, e com o preço habitual. Estavam aprisionados e para sempre seria assim. Foi por isso que, como em todas as outras vezes, pararam naquela porta e não foram além, pois além havia a escada, a escuridão e a excitação, e as correntes não permitiam tal banquete. Entretanto, apesar de todo o cuidado, os olhares julgadores ainda corriam eufóricos ao derredor, invisíveis e astutos. Ela tentava pegá-los, pelo simples prazer de ser capaz de percebê-los e prová-los errados; Ele, por outro lado, os ignorava, não porque era a melhor opção, mas porque era a menos dolorosa. 

Sim, ela e ele estavam no fim do corredor. Sim, ela e ele pararam onde poderiam ser vistos, pararam em uma porta. Pela sorte de olhos não serem capazes de ouvir, eles agora tinham privacidade, por menor que fosse, para conversarem sobre os infinitos obstáculos que os impedem de obter um contato mais genuíno. Obstáculos, esses, que são capazes de se materializar em qualquer coisa, até mesmo em uma porta. Sim, eu disse que ela e ele haviam parado em uma porta, não disse? Porém, mais parecia que tinha sido a porta que escolhera parar ali, justamente entre os dois. A dura verdade é que aquela porta sempre esteve lá, muito antes deles desconfiarem da existência um do outro, quiçá antes mesmo de ambos terem nascido. Mas se torna divertido, por vezes, pensarmos nesse tipo de simbolismo: No meio do caminho tinha uma porta, tinha uma porta no meio do caminho - e antes fosse só uma pedra. Eles não percebiam o que aquela porta representava no momento, provavelmente distraídos pela insistente procura por respostas que explicassem toda a situação, um esforço quase inútil. Dúvidas mais nasciam do que morriam e, durante esse ciclo, sem o querer das partes envolvidas, a porta ia se expandindo entre eles. Dentro da abertura existia uma força física que empurrava de volta ao lugar adequado aquele que tentasse ignorar as regras, desconsiderar as dificuldades. A força tinha diferentes faces, a face de uma proibição, uma culpa, uma vida antecedente; a face de um medo, um princípio, um eclipse. Para uma pessoa comum, era apenas uma porta com uma sala vazia, para eles, não. Era um tudo vestido de nada, assim como um começo vestido de fim.

Tão perto e tão longe, eles conversaram, cumprindo o rotineiro parto de dúvidas. Mas a angústia valia a pena, porque apreciavam a companhia um do outro. Trata-se de uma história triste, muito triste, mas também valia a pena, porque apreciavam o olhar e o sorriso um do outro. Os pensamentos são sempre mais rápidos que as palavras. Eles sempre atropelam tudo, inclusive as diversas faces de uma força inibidora. Embora exista o partir dos corações, tais momentos servem para tentar remendá-los, enquanto continuam a quebrarem-se, selando um completo paradoxo. 

O tempo voou na velocidade dos pensamentos e, quando ela e ele deram por si, já era tempo de ir. A porta cumpriu sua função com sucesso. Ainda restava muito o que dizer e fazer. Mas para quê, afinal? Eles bem conheciam a gravidade de suas ações concretas e hipotéticas. Além do mais, algumas poucas coisas merecem o campo do subentendido para que haja certa magia. Logo, conforme foram se afastando da porta, a mesma retornava ao seu aspecto anterior, o de simplesmente ser uma fenda em uma parede, nada mais. Os olhares aquietaram-se e retomaram o humor padrão. A luz que se ausentara da escada por todo aquele intervalo de tempo, voltou a resplandecer os degraus. Parecia que não, mas tudo estava recobrando a normalidade. Eles chegaram ali juntos. Eles foram embora separados. Não podiam bobear, com certeza a essência do obstáculo deixou aquela porta para poder possuir qualquer outra coisa.

A questão é quanto mais ela e ele se afastam, mais eles se atraem. Essa, aliás, é a parte mais triste deles. A parte da divisão do coração com a contradição dos atos. Quem sabe um dia alguém explique isso... Explique ela e ele.