sábado, 28 de fevereiro de 2015

A Gênesis de Garvânia

Eis que antes do início de todas as coisas, a escuridão reinava e o caos, a ela, servia. Quando entre os dois houve atrito, criou-se a luz, com a luz veio a ordem e a partir destes, nasceu Garvânia, a Terra.

Seguidamente, Ela originou quatro filhos prometidos a protegê-la: Helena, a leal; Tímus, o sábio; Sara, a árida; e Gorfã, o medonho. Eles dividiram entre si os pólos, formando o Norte (Helena), Sul (Gorfã), Leste (Sara) e Oeste (Tímus). Porém, à retaguarda de qualquer proteção minuciosa, ao reencontrar a escuridão no centro de seu interior, Garvânia gerou Guiliã, um filho que carregava em sua existência presságios pavorosos.

Receosos, os primeiros herdeiros amaldiçoaram a vida deste que fora nomeado indigno. Igualmente amaldiçoadas, foram as terras herdadas por Guiliã, ditas centrais, infestadas com vulcões e poeira escura. O indigno, por sua vez, julgando de injusta tal decisão, forja do magma uma criatura alva e de feição fúnebre, intitulada de humano.

Tão pequenos e tão mortais, mas destruidores. Nascidos da lava e raiva grotesca, retrato de seu ambiente e criador, a prole teria como instinto gerar atribulações e destruição por todo o mundo.

Os demais Irmãos, atormentados com o ocorrido, advertiram Guiliã. Mas o Herdeiro do centro da terra continuou a postergar quaisquer regras. Os humanos, já numerosos e organizados, espalharam-se por toda Garvânia e ultrapassaram as fronteiras. Sendo assim, os herdeiros dos pólos forjaram seus próprios filhos destinados a defender seus respectivos lares.

A retomada dos territórios, antes invadidos pelos homens, tingiu a história do mundo de cor escarlate - o sangue humano. Batalhas cruéis drenaram o mar de Guilianeses de volta ao inaproveitável centro da Terra - a punição seria subsistir, mergulhar entre desolações; e quanto a Guiliã, uma prisão na mais distante estrela do cosmo o aguardava.

Estes novos filhos, legítimos, representavam a ordem. Primeiro vieram os Gorfaneses, tão monstros e abissais quanto os homens, mestres dos ofícios e trabalhos; em seguida, Nutrilianos, filhos de Helena, guardiões da natureza e harmonia; Tímuneses, protetores do conhecimento e especialistas em elementos; e por fim, os místicos Sarenses, seres mestres nas infinitas dimensões da mente e consciências.

A ignorância de um homem, porém, jamais saberia descrever o que os diferenciava dos genuínos. Então, em detrimento da compreensão, fora criado o idioma humano, anteriormente limitado a sinais. Entretanto, o que compreenderam foi a existência de um símbolo. Um dom que os filhos de Guiliã jamais testemunharam ou possuíram. Fora nomeado de 'o brilho da alma', provável fonte de força e júbilo entre os legítimos. Era lindo aos seus olhos e hipnotizante à alma.

Era o sorriso.

Eles estudaram-no, veneraram-no e tentaram capturá-lo. Obcecados por aquele símbolo, enaltecido como a ferramenta que os levariam à legitimidade, as broncas criaturas que pudessem ser denominadas de sábias foram enviadas em expedições. Porém, a fonte para o sagrado dom manteve-se inalcançável e o que restavam-lhes era um fim pior do que a morte.

Os quatro herdeiros, ainda presentes na terra, conservaram o equilíbrio e isolaram os humanos de tal forma que nem mesmo o amanhecer germinava para eles. E na mais profunda noite, eles permaneceram imunes a extinção.

Criador aprisionado e prole condenada.
A segunda era dos humanos em Garvânia começara.

Os vulcões adormeciam diante da distância de Guiliã, tornando os humanos cada vez mais estranhos à luz. O silêncio do que antes denominava-se invencível extinguiu velhos costumes e apagaram crenças. Na ausência do pai, o abandono apadrinhou os homens oferecendo apenas tristeza em seu futuro escuro.

Gorfã, o pai dos monstros, por outro lado, preencheu seu coração de uma obsessão indomável pelas terras agora sem herdeiro. Seu interesse pelos vulcões moveu esforços e perseguições violentas para conquistar a casa de seu irmão mais odiado. No entanto, uma coisa resistia ao furor sulista, uma tribo, povoada por humanos revestidos do magma de Varlanóiã, o último vulcão ativo da terra. Nem mesmo a horda mais macabra obteve o êxito desejado e o ódio de Gorfã envergou-se para um destino sanguinário.

Varlanóiã erguia sua aparência negra junto às cordilheiras de Coimbra, banhando de larva sua redondeza e rugindo grunhidos dilaceradores de ar. Na falha situada aos pés do vulcão, sobre a planície elevada, viviam as únicas criaturas capazes de aguentar tamanha desolação: Humanos. Estes faltavam-lhes sombras, eram selvagens e não se interessavam por sagrados símbolos descobertos no Norte. Mantiveram-se junto à sua natureza, a violência de um Guilianes, e devolviam com igual gravidade, o ódio de Gorfã.

Ataques investidos, resistência humana e a falha dos monstros: esta ordem de acontecimentos manteve-se por muito tempo, adicionando tons escarlates ao solo negro de Varlanóiã. Gorfã, fruto da luz e escuridão, fora o legítimo que escolheu as sombras, escolheu dar vida às aberrações, pois desde que testemunhou a natureza destruidora e selvagem dos humanos, desejou tal instinto em seus filhos. O sul de Garvânia, representava o limite da terra, o inverno e os dias curtos; Com seu aspecto espinhoso, planícies são escassas e montanhas pungentes  acrescem por quase todo território até o oceano gélido com seu horizonte nebuloso e infinito.

Enquanto as escuridões confrontavam-se, Tímus, Sara e Helena escolheram não intervir no conflito por temerem o contágio com a selvageria vigente, muito menos repreenderam os desejos de Gorfã ou procuraram seus reais motivos. Dos demais filhos legítimos de Garvânia veio apenas a liberdade de nomear a batalha:

A Guerra dos Horrendos.

O primeiro ataque à Varlanóiã havia se tornado um passado distante, o qual apenas a derrota permanecia inalterável. Guinchos de espadas, com ódios descendo junto aos golpes, e feridas cada vez maiores ecoavam pela fúnebre atmosfera do sul. Os humanos continuavam a resistir, com o brandir do último vulcão, às hordas abissais que penetravam nas sombras trazendo a ambição de um legítimo. Porém, o brandido tornara-se abatido, sonolento, como se estivesse caindo em adormecimento.

O temor estremeceu os humanos.

Farto com a derrota e de coração petrificado, Gorfã buscou do mais profundo manancial das montanhas negras a matriz para Suas novas hordas. Destes ele arrancou o brilho da alma, armou-os do mais ínfimo furor e avermelhou seus olhos. Das cordilheiras de Coimbra era capaz de testemunhar o bater dos tambores, o reluzir de chamas verdes e o brado dos monstros, reprimindo Varlanóiã ao sussurro. Revestidos de rancor, as legiões abissais investiram o único ataque necessário para sucumbir os humanos do sul, não levando misericórdia alguma consigo.

Os indignos foram derrotados.

No entanto, ao ponto cego de olhos sedentos de sangue, um vestígio salientou à ira: uma jovem humana de pés pálidos e vestes encardidas. Ela fugiu horizonte glacial adentro, mesmo com o peito atravessado por uma arma de Dolordrã, almejando a clemência dos deuses. Mas a única resposta que recebia era o eco de seu sofrimento. A dor lancinante percorria todo seu corpo potencializada pelo frio, perfurando como agulhas a carne, os nervos e ossos. Logo, o ferimento manifestou à manceba excrementos esverdeados do mais profundo sangue de Garvânia e um odor nauseante de enxofre. Para a desistência ela tentou entregar sua peleja, urrando súplicas pela morte, mas uma presença parecia puxá-la, impedindo-a de parar.

Quando a alma se dispôs abandonar aquela vida, trancando-se no abismo mais obscuro da consciência, surgiu do céu, através das nuvens negras, uma penumbra. Da fresta vazou uma luz amarelada, atingindo a humana em resplandecência jamais testemunhada por um filho de Guiliã. Contudo, ao invés de um calor reconfortante, veio a dor e a acidez, seguido do crepitar escaldante onde a arma encontrava-se. Não havia mais presença guiadora, nem o caminhar contra a vontade, apenas o cair oco sobre a neve e o contorcer de agonia.

Mesmo refém do sofrimento, ela questionou o por quê daquilo, o por quê da penúria, de ser a única que resistiu ao ódio de Gorfã.

Então veio o silêncio;
Depois uma voz;

- DEIXAI DE SER ESTRANHA À LUZ, CRIATURA DE GUILIÃ, O SANGUE DESTA TERRA AGORA CORRE EM SUAS VEIAS. QUE TORNE-SE LIMPA TUA VESTE E SEMBLANTE, E VOSSOS PÉS AQUEÇAM-SE, PORQUE GUARDO EM TI A CHANCE DE TUA RAÇA TRIUNFAR. DESCANCE POIS AGORA EM MEU CORPO, ARMORA.

E o cair inconsciente se fez, alvorecendo uma nova era para os humanos.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

A Canção dos Humanos em Garvânia

Horripilante criatura!
É aquela que não sorrir.
Ausente brilho da alma,
aos humanos era apenas capaz subsistir.

Frutos de indignação,
criados ao intuito de destruição.
Isolados e frios,
para eles, restava somente a escuridão.

Quem poderia imaginar,
que dentro deles havia poder e ganância?
E que seres de pequenos e quase extintos,
alcançariam grandiosa relevância?

De fato, sua incapacidade de sorrir
é contrária a de sobreviver.
Porém, vosso sofrimento
o fim é impossível prever.

Apesar da escuridão, apesar de uma maldição,
No fim, houve uma solução, uma esperança,
um sorriso...
E todos os humanos poderiam se beneficiar por isso.

--

N.T.: Há milhões de estações, existiu Garvânia, uma terra inundada de mitos e criaturas que convidam para um baile apoteótico a imaginação (pelo menos a minha). Este texto é o primeiro, de muitos, que povoarão este blog com crônicas e canções que invocam a magia deste mundo.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Correntes de Cifrões

Miomir anda pelas ruas da cidade. Ele tenta gostar disso por precisar fazer isso, pois o isso é o seu trabalho. Ele sempre fora determinado em considerar-se um "guerreiro" livre de amarras, espontâneo e desinteressado por quais rótulos eram conferidos sua pacata pessoa. Mas ultimamente, em vista do quanto isso é desconfortável, ele vem sentindo as pernas pesarem. Olhando ao redor de suas andanças, Miomir vislumbra uma realidade mais perturbadora do que seus olhos, pertinentes otimistas, faziam-lhe enxergar:

Correntes.  
        
Elas serpenteiam pela calçada e asfalto, amontoam-se em casas e pessoas, e atingem distâncias imensuráveis. Preenchem o céu, ar e chegam a estremecer até mesmo o interior do mundo em que este jovem vive. Forçar as pálpebras, o pobre Miomir arriscou, no entanto, refutar a sua mais nova visão do mundo, mostra-se ineficaz. Anos de sossego e independência desvanecem conforme sua vista torna-se cinza. A admiração permite que a ponta de uma corrente passe rente a ele, uma corrente ausente de um cativo. O tilintar desta gela a espinha de Miomir, gerando um impulso, inútil, de correr. Este, porém, era o resultado da negligência. O fim de meios os quais Miomir não procurou esforços em extinguir de sua vida. Ele permitiu esta prisão, coexistiu com a aproximação das correntes, e agora elas estão ali para levá-lo.

Como um criminoso encontrando a detenção, ele reage. Mas agora agarrado pelos pés que antes guiavam uma vida independente, Miomir apenas pode permitir a si olhar ao redor mais uma vez. Neste redor, percebe que as pessoas aceitam a prisão. Trabalham, estudam, amam, enfim, vivem com elas. Ele até mesmo ver pessoas matando por elas, destruindo futuros com elas, roubando ou guerreando por elas. Então Miomir entende que é o único ali resistindo à prisão, ecoando e gastando seu fôlego para o vazio, para um mundo que não o enxerga mais. As amarras, porém, apresentam-se como anjos libertadores e recompensadores, munidos de felicidade e prazer pleno. E uma vez selada a infeliz epifania, Miomir, numa compreensão que jamais ocorreria no que agora ele pode nomear de "antigo eu", admite que não seria tão ruim ser um prisioneiro... Um escravo dos cifrões.