Sobre esta rua, nesta minha rua, uma chuva não convidada faz estadia. Ela veio com a naturalidade que não se pode deter, pois o tempo e o seu incorruptível andar estavam como fiéis aliados, em trajes finos e solenes, preparados para ocasiões formais e sérias. Juntou-se alguns fatores facilitadores, como inércia e vulnerabilidade crônica, e pronto, nuvens enegreceram como roupa branca suja-se na lama. Quem poderia presumir? A hora de sua chegada foi a hora da nossa vontade de enxotá-la, num timing mais humano impossível. Se esta chuva renova ou não o antigo solo, hoje muito encharcado, não se sabe ao certo. Na verdade, se sabe, sim. Ou não. Sei lá. O fato irrefutável da prosa é que está chovendo.
Não é garoa fina nem torrente que causa enchente. É chuva de meio termo, como a vida ou a morte, que jamais tomam partido de um lado. Não serve para beber, mas serve para banhar, até mesmo aqueles que não a querem como a água que os banham. Serve principalmente para deteriorar a fotografia. A fotografia que cada morador desta rua carrega nas mãos da mente, guardada pelo íntimo afeto e nostalgia que conduz as lágrimas, as quais se perdem com os pingos. A querida fotografia vai perdendo seu brilho conforme os dias passam. Sabemos que é natural, só não sabemos lidar com isso. Nela estamos nós, os habitantes, desde o passado ao presente, desde o novo ao mais velho, ligados por mais coisas que números e muros. Todos nós expostos às gotas de meio termo.
Alguns estão sendo manchados, desbotados ou borrados. Mas há os que estão sendo apagados, deixando um vazio no quadro. Não será preenchido. E com o assistir da dança desta borracha imperativa, assistimos sincronicamente o passado se tornando mais passado ainda; memórias de um tempo atrás, em lembranças de um tempo demais; e a vida, que tanto parecia longa e invariável, em um choque de realidade mordaz. A chuva persiste e a correnteza por ela criada leva aqueles que não imaginávamos que iriam, fazendo da ausência da despedida digna nosso maior pesar. Seja querido ou não, amado ou não, é do passado que estamos chorando; o passado que em tudo tinha a ver com o presente e em nada terá com o futuro.
Tudo isso vai com a chuva. Somos os anfitriões da vez. Peço a Deus pela alma dos que se foram e pela vida daqueles que ainda estão sob ela, pois esta é a dádiva que chamamos de vida. Esta é a rua que não morrerá. Esta é a chuva que uma hora vai parar. Esta é a fé que não perecerá. Esta é a gente que não se esquecerá. Este é o ciclo, que para sempre se transformará.
E caso esteja achando que ando falando muito de chuva, saiba que a deste texto é diferente, é algo além; a espécie de chuva que não desejo pra ninguém. Que a proteção do divino Senhor esteja com todos, amém.
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